Yannick Manuel Ngombo levou 13 anos para ter o seu primeiro disco no mercado. À obra, que tece críticas à sociedade, o cantor chamou “Mentalidade”, porque, como diz, apela à mudança de mentalidade. Yannick faz uma espécie de raio-x à sociedade, não escapando à crítica temas tão polémicos como relações extraconjugais, homossexualidade, racismo ou solidariedade. O disco, um dos sucessos dos últimos tempos, é um reparo generalizado, do qual nem mesmo ele saiu incólume. “Também cometo os mesmos erros”, dá a mão à palmatória. Mas este torneiro mecânico de profissão prefere dar voz aos anónimos: “Falo alto o que o povo fala baixo”.
Jornal de Angola: Um disco muito crítico, por meio do qual mostra alguns males de que enferma o tecido social. Que sentimentos lhe inspiram hoje a nossa sociedade? Está desapontado, zangado?
Yannick Manuel Ngombo: Estou triste com aquilo que vejo. Acho que podemos fazer mais pela sociedade. Somos um povo batalhador e cheio de vontade, mas às vezes deixamo-nos levar por essas coisas mínimas, essas coisas pequenas que se tornam grandes e caímos depois na ignorância. O nosso grande problema está mesmo aí, na ignorância. Há pessoas que têm consciência do que estão a fazer. Às vezes vejo Angola como um palco para teatro, onde cada um acha que deve dar o seu espectáculo. Mas não deve ser assim. Em todos os sítios, na vida, há regras que temos que seguir. Vou dar só um exemplo. Um fã teu gosta da tua música e da tua pessoa. Mas na rua diz-te assim: “você não é nada”. E isso apenas para “dar show” no meio onde se encontra. E nós, como seres humanos, muitas vezes caímos na provocação. Quem estiver a ver é capaz de pensar ou dizer: “Yannick é músico, mas tem este comportamento. Estava a discutir com o fulano”. Por estas e outras situações é que fazemos um apelo à mudança de mentalidade.
JA: Quem é Yannick?
YMN: Yannick é uma pessoa normal, simples, como qualquer outra. Uma pessoa que leva uma vida normal; que quer ver o país crescer; quer que o futuro do seu filho seja melhor do que o seu.
JA: E no que respeita à personalidade
YMN: Sou uma pessoa simples, contento-me com o que tenho; procuro fazer sempre o melhor e não invejo ninguém. Sou uma pessoa muito simples e batalhadora.
JA: Que diferença há entre o Yanick cidadão e o Yannick músico e crítico?
YMN: Nenhuma. Quem me conhece, sabe que sou a mesma pessoa. Talvez a minha música tenha essa interacção com o público, porque consigo ser “real”, como nós, os rappers, falamos: ser eu próprio. Isso torna mais fácil escrever as minhas músicas, porque não procuro palavras bonitas, nem fazer coisas que não entendo. Só faço e falo do que entendo e, quando não entendo, não toco no assunto ou peço explicação. Enfim, sou essa pessoa que a minha música mostra. O grande defeito que tenho é aconselhar. Não consigo ver uma coisa errada e ficar calado. Também me custa ver alguém fazer uma coisa bonita e não elogiar.
JA: Quando faz as suas letras ou quando as canta, lembra-se de alguém, em particular, a quem atinge? Toca alguém que lhe é próximo ou a quem está directa ou indirectamente ligado?
YMN: Com certeza. Pelo menos 80 por cento do disco é a minha experiência. Em cada música, há sempre uma passagem que se refere a alguém que conheço. Há sempre uma pessoa que me “incentivou” na letra. Não me incentivou a dizer fale “disso ou daquilo”, mas a sua atitude inspirou-me a escrever. Não há uma música minha que não tenha um exemplo próximo.
JA: Essas pessoas sabem ou pelo menos suspeitam que esta ou aquela crítica lhes é dirigida?
YMN: Não, não sabem. Pelo menos acho que não. Sou muito observador e “bom de ouvido”. Às vezes falamos de uma coisa simples, aparentemente sem importância, mas eu registo. Agora lembro que, em alguns casos, pessoas que me rodeiam dizem que nesta ou naquela música cantei para elas. Mas não tem nada a ver. Não é apenas uma pessoa que espelha o que eu canto. Por exemplo, muita gente reclama dos engarrafamentos. Quando escrevi “Tá calor”, eu próprio vivia em casa de chapa de zinco. Esse sofrimento incentivou-me a escrever. Uma vez, no candongueiro, ouvi uma senhora dizer: “possas, isso é calor, estou a transpirar até no...” E para não reproduzir as reais palavras da senhora, na música, cantámos “no... eh, eh, eh”. São situações que presenciei. Portanto, se há muita gente a queixar-se de uma determinada situação, esta mesma situação é incómoda à sociedade. Por isso, levo-a para a música. Portanto, eu falo alto o que o povo fala baixo.
JA: Yannick revê-se nessas críticas?
YMN: Com certeza. Estou aí, bem dentro. Também cometo os mesmos erros. Quando faço estas chamadas de atenção, estou a fazê-las igualmente a mim. Quando faço estas críticas, tenho que dar o exemplo. Por isso, também devo mudar, para poder servir de exemplo.
JA: A propósito de exemplo, Yannick não mostra, nas letras, os caminhos a seguir para a mudança de mentalidade que apregoa no disco. Apenas críticas, praticamente ...
YMN: Se notar bem, nas minhas músicas começo sempre com uma crítica, mas no fim há sempre uma sugestão, um conselho. Aprendi que o homem deve criticar apenas quando tem a intenção de ajudar. Não posso dizer que a camisa que vestiu não lhe fica bem, pura e simplesmente. Devo acrescentar algo como: uma vez que a sua pele é clara, talvez uma camisa escura lhe ficasse melhor. É uma sugestão. Na minha música, quando digo “mentalidade, atitude”, no fim vem sempre “se a gente não mudar de consciência, vamos sempre patinar”. Na música em que digo “casa está difícil”, acrescento “não importa a distância, eu vou lutar para conseguir a minha casa e tenho fé, vou conseguir”. É um encorajamento. As pessoas têm que saber entender isso. No fim da minha música, há sempre uma luz que procuro mostrar. Apesar de tudo, há um caminho a seguir.
JA: Já alguma vez foi intimidado? Já alguém o chamou à atenção para a dureza das suas letras? Já sentiu alguma pressão por isso?
YMN: Não. Sentia alguma queixa de mulheres, que me acusavam de criticar apenas mulheres. Mas a minha música é dinâmica e não a direcciono para apenas uma posição. O que transmito na minha música é informação. Se tiver que falar das mulheres, falo, assim como dos homens. Falo o que sinto e o que vivo. Se uma determinada coisa me toca, eu transmito.
JA: Yannick critica também o que chama falta de solidariedade entre nós. Seria capaz de intervir no caso de alguém estar a ser assaltado?
YMN: Sou capaz, até já fiz isso. Mas acabei por ter uma arma apontada. Disseram-me “Pai Grande, é melhor andar. Vai só, Pai Grande.”
JA: Não será esse receio de ter a vida em risco que desencoraja as pessoas a ajudar?
YMN: É verdade. Mas, às vezes, a nossa intervenção acaba também por desencorajar o assaltante. Por exemplo, o facto de eu me ter metido no assunto, evitou que outros males acontecessem à vítima. O meliante viu a sua acção interrompida. Gritámos e o assaltante fugiu. Levou apenas o telefone, quando na verdade ele estava a “desmontar” a pessoa. O que conta é o gesto. Ele já estava a tirar o cinto e o casaco da rapariga. Se não gritássemos, podia acontecer coisa pior. Talvez tenhamos exagerado ao correr atrás do assaltante, pois foi a seguir a isso que ele puxou da arma. O importante é que fizemos a nossa parte.Quando era mais jovem, quando entrei no rap, tinha um ídolo que era o líder dos Public Enemy. Na altura, falava-se muito do movimento dos Black Panther, mensagem que esse grupo trazia nas suas músicas. Eles cantavam o orgulho de ser negro, de cada um ser sempre o que é. Nós vivíamos naquele complexo de cor, raça, enfim. O rap tem na crítica social o seu objecto. Esse cantor despertou-me para muita coisa, trouxe-me até “fome” de conhecimento, de tal modo que pesquisei mais para saber de que ele falava. Pensei, então, que se um dia tivesse que cantar, ia despertar as pessoas do mesmo modo que o rap me mudou. Ele é a fonte da minha inspiração, quem me deu forças até hoje. Ele já não canta. As coisas mudaram. Hoje, estamos a chamar a atenção para os buracos em estradas ou para a falta de energia. Mas amanhã, letras assim já não farão sentido, porque as coisas estão a melhorar. Ontem falávamos de guerra, hoje ninguém mais canta isso.
JA: Também é crítico em relação a negros que, como diz, depois de melhorarem a sua condição social e económica, separam-se da mulher (negra) e partem para nova relação, com uma mulata. Reprova a relação entre um negro e uma mulata?
YMN: Não, nem tão pouco. Não critico as mulatas. Eu critico o nosso complexo. O problema está no complexo. Quando uma pessoa deixa uma negra para relacionar-se com uma mulata, simplesmente por esta outra mulher ser mulata, isso é complexo. E este sentimento é uma arma perigosa, que impede até o progresso da própria pessoa e do país. Não devemos ver as pessoas pela cor da pele, mas pelo que elas trazem dentro de si. A minha juventude foi vivida fora do país, entre mulatos e brancos. Conheço negros que dizem gostar mesmo de mulatas. Não podemos ver as coisas assim.
JA: Mas há gostos mesmo, genuínos. Para além disso, as pessoas são livres de se juntarem a quem quiserem.
YMN: Quando se fala de negra e mulata já é questão de raça. Não temos de gostar de outra pessoa pela cor da pele. Imagine que alguém o deteste por ser negro? Vivi fora do país e senti o racismo na pele, senti a discriminação, a falta de emprego por ser negro. Vivi na Alemanha, França, Espanha e Portugal e senti o racismo na pele. Tentei melhorar as minhas condições, viajando para a Europa e dando continuidade aos estudos. Mas encontrei uma realidade diferente. Quando regresso a Angola e sinto a mesma coisa, é muito complicado. Nós próprios abrimos caminho para este tipo de atitude. O próprio branco, quando vem do seu país, vê o negro como um ser normal, como qualquer outro. Mas, depois, percebe que tem tratamento especial por causa da cor da pele e, assim, vai se sentindo superior a nós. Este complexo é que nos trava. Não tenho, portanto, problema algum com as mulatas. Para mim, toda a gente é igual.
JA: Quem é Yannick e quem é Afroman. Onde começa um e outro?
YMN: Éramos um grupo de três. Um foi viver para fora do país e o outro faleceu. Nos Afroman, ficou apenas Yannick. Conservei o nome em memória do meu falecido amigo, pois sinto a presença dele em palco, o que me dá vida.
JA: Numa entrevista sua, diz que é natural de Luanda, mas prefere considerar-se do Uíje, terra dos seus pais. Tem alguma coisa contra Luanda ou contra os luandenses?
YMN: Não tenho nada contra Luanda. O problema é que todo o mundo é de Luanda e já não tem aquele impacto. Há necessidade de levantarmos também o outro nosso lado. Eu mais pareço alguém do Uíje do que de Luanda. Sou bakongo cem por cento.
JA: O espectáculo dos Coqueiros chegou a assustá-lo?
YMN: Tenho dito que o meu povo me tem surpreendido. O que aconteceu nos Coqueiros foi um momento muito especial, único. Tinha esperança de enchente na relva apenas. Mas aquilo ultrapassou tudo o que eu esperava. Mesmo com a venda dos bilhetes, ainda me custava a acreditar. Antes do dia, nunca se tem tanta certeza. Arriscámos. Nos Coqueiros, só vão cantores e grupos com muitos anos de carreira. Quem sou eu? Sou apenas uma miniatura, ao lado de grupos ou cantores como os Kassav, a Banda Calipso, Paulo Flores ou americanos que por lá passaram. Mas decidimos fazer e fomos sentindo o “feed-back” do povo com o lançamento do disco.
JA: Numa escala de cantores angolanos de 1 a 10, qual é o lugar do Yannick?
YMN: Não vou nisso. Estas coisas não são comigo. Prefiro o retorno do povo. Ainda que seja o número 50, desde que tenha o retorno e o carinho do povo, já é bom. Sei apenas que estou num bom momento e tudo está a correr bem. Agora, isso de lugares não é comigo. Não é ser modesto demais, mas não vou por aí.
JA: Como avalia o momento da música angolana?
YMN: Podia estar num estágio mais desenvolvido. Acontece que há discriminação, que começa já no estilo de música. O cantor não tem apoio. O meu disco levou anos e anos para sair, de 95 até hoje. Já mostrámos que temos talento, mas, ainda assim, ninguém ajuda, os empresários dão-te as costas. Mas sabemos que a música eleva um país. A nossa música está a crescer e os cantores a caprichar. Por isso, os empresários deviam ajudar mais. O nosso estilo não exige muito dinheiro. Mas as pessoas que podem ajudar ainda reparam em quem vem solicitar apoio. Se não “vai” contigo, não te ajuda. Dos bancos e do Ministério da Cultura nem adianta falar. Para a Cultura, é só ouvir que é um rapper para logo desprezar, porque o semba é da terra e a nossa música é do céu. São estas pequenas barreiras que ajudam a afundar a música. Toda a gente dança as nossas músicas, mas se um de nós adoece, é um grande problema. É preciso ir à radio e a partir daí pedir apoio. Não temos seguro nem coisa parecida. A nossa velhice só Deus sabe como será.
JA: Mas há cantores a receber pensões ?
YMN: Até chegarmos aos anos de carreira que dão direito à pensão ainda vai levar muito tempo. Não sei se essa nossa geração de hamburgers chega a tanto. Os músicos não têm assistência nem coisa parecida. Nem credencial que nos identifica como músicos temos. Vivemos assim.
JA: Yannick critica a homossexualidade. Por um lado, prega à mudança de mentalidade, mas, por outro, coarcta liberdades e direitos. O que tem contra os homossexuais?
YMN: Sou contra os homossexuais. Sou livre, por isso falo o que sinto. Não posso pedir às pessoas que aceitem os homossexuais, porque acho isso uma doença. Quem achar que estou errado, muito bem, não sou perfeito. Mas esta é a minha opinião. Quando estou a pregar, espero que não me vejam como pessoa perfeita. Tenho também os meus defeitos.
JA: Uma pergunta que mereceu crítica no seu disco. “Para além de cantar, faz mais alguma coisa?”
YMN: Vou responder como na música: “Perguntas banais”. Isso é como perguntar-lhe: “Para além de jornalista, não faz mais nada?” Esse é o meu trabalho. Ontem, também o jornalismo era actividade vista com algum desprezo. “Está a estudar só para ser jornalista? Jornalista ganha o quê?” Eram essas as perguntas. Quantos jornalistas andam a pé? Muitos! Estamos todos a tentar marcar passos na vida. Gosto e amo a música, porque sempre foi o meu sonho. Hoje, graças a Deus, estou a fazer isso. Se tiver que morrer a cantar, não há melhor que isso.
JA: Consegue-se alguma estabilidade financeira com a música?
YMN: Sim. Mas o cantor só vive da música, quando está no topo da carreira. Enquanto estiver a fazer sucesso, vai vivendo da música. Ainda não tenho necessidade disso. Sou torneiro mecânico de profissão, porque o homem tem que fazer alguma coisa. Foi uma obrigação. Eu gosto da música.
JA: Quanto lhe renderam o disco e o espectáculo?
YMN: Nem tudo na vida envolve dinheiro. Mas o disco foi sempre uma luta, para depois conseguir uma casa. Se me empenho na música, então na música tenho que ganhar. Sempre acreditei que o meu disco iria vender. Por isso, nunca assinaria um contrato que não me beneficiasse. Se fosse para tirar um disco apenas para fama, preferia tirar uma música e ir vivendo. Levou tempo, mas consegui o disco e hoje tenho algum dinheiro no bolso. Estou atrás da casa, que ainda continua difícil. Estamos quase lá. Quanto ao show, o meu maior desejo era um dia encher um estádio. Já vi DVD de Luk Dube ou Bob Marley em espectáculos que juntaram multidões. Este era também o meu sonho. Quando me surgiu a proposta, aceitei-a logo. Nem discuti sequer quanto iria ganhar. O desafio era grande, assim como os gastos para o espectáculo. Eles apostaram em algo que era o meu sonho. O dinheiro que sair daí será bem-vindo. O maior ganho para mim foi o próprio espectáculo.
JA: Sabe quanto vai receber?
YMN: Não sei quanto vou receber. Mas já realizei um grande sonho na minha vida. Daqui para frente, é trabalhar. Quanto mais pessoas gostam do nosso trabalho, mais as responsabilidades aumentam.
Fonte: Jornal de Angola
Esta entrevista foi-me enviada por Decio Faria a.k.a. Pitbull Mau